domingo, 24 de fevereiro de 2019

A desonesta equiparação entre Marighela e a Ditadura


Para quem tenta colocar um sinal de igualdade entre a Ditadura Militar e as guerrilhas que a combateram, vejam o depoimento dado por Charles Elbrick, o embaixador dos EUA sequestrado pelos grupos MR8 e ALN (sendo esta a organização liderada por Marighella):

"Bom, daquele momento em diante eu fui tratado muito bem, devo dizer, que se um dia eu for sequestrado ou colocado na prisão, eu gostaria de ser tratado da maneira que eu fui tratado dali em diante. No dia seguinte eles foram muito agradáveis, atenciosos, eles tentaram fazer o que podiam para ver se eu estava confortável. Não era muito, mas eles tinham recursos limitados eu suponho."



Ele também relatou que recebeu revistas antigas e um livro em inglês sobre Ho Chi Min para ler, além de ter seu estoque de cigarrilhas sempre reposto e ter sido alimentado. Segundo Elbrick, a comida não era muito boa, mas os guerrilheiros se desculparam por não serem bons cozinheiros.

Quantos sindicalistas, estudantes, inclusive jovens mulheres, mães, foram submetidos às mais bárbaras torturas e estupros, muitas vezes até a morte e com ocultação de cadáveres? Por vezes as torturas envolviam crianças, como demonstram as reportagens de Luiz Carlos Azenha ( https://www.viomundo.com.br/denuncias/criancas-na-ditadura-militar-tortura-exilio-e-clandestinidade.html )

Colocar um sinal de igualdade entre os torturadores covardes e aqueles que arriscavam as vidas para pôr fim àquele regime odioso é um ato de má-fé.

O depoimento completo (em inglês) do embaixador pode ser lido no endereço http://media.folha.uol.com.br/agora/2015/07/09/document2015-07-08-193026.pdf

As estrelas no capitalismo

Toda vez que assisto a documentários e cinebiografias de intérpretes e músicos cujas obras alcançaram enorme sucesso comercial enquanto eram vivos e acabaram morrendo tragicamente, muitas vezes ainda jovens, fico pensando no quão pouco se questiona o quanto a indústria fonográfica e a mídia como um todo contribuíram para a tragédia. Penso que isso ocorre em parte porque esses documentários e cinebiografias, ao relançarem as obras póstumas, perpetuam não só a arte, mas o lucro das corporações que detêm direitos sobre ela.



Quando estão em ascensão, vende-se uma imagem gloriosa dessas estrelas, expõem-se a intimidade delas para o mundo, viram capas de revistas, fazem ensaios, filmes, dão entrevistas aos montes e participam de turnês exaustivas que acabam com a sanidade física e mental delas. Movimenta-se uma quantia enorme de dinheiro.

As relações pessoais desses artistas geralmente são muito afetadas por tudo isto, alguns familiares em que se confiava se revelam verdadeiros oportunistas, o tempo com filhos é comprometido pela agenda intensa de shows, etc.

Quando tudo isso se torna insustentável física e psicologicamente e as estrelas começam a entrar em depressão, a abusar do uso de álcool e outras drogas, etc. a industria fonográfica segue exigindo o sangue delas para o cumprimento de contratos e execução de shows - se não o fizerem têm que pagar multas e se contentarem com o que recebem por direito autoral, uma fração pequena frente ao que fica para as gravadoras. A mesma mídia que antes vendia uma imagem gloriosa dessas estrelas passa a vender a imagem de sua destruição. O foco passa a ser explorar os aspectos mais tristes, doentios e escandalosos do que se passa na vida pessoal da estrela, que há muito já não tem direito a privacidade.

Tudo isso me faz pensar também no velho argumento liberal de que é uma grande vantagem do capitalismo a possibilidade da ascensão social pelo esforço e pela manifestação dos diferentes talentos. Mas será que é preciso se chegar a tanto? Será que tanto dinheiro tem que ser movimentado em torno da ultra-exploração da imagem desses artistas, que muitas vezes começam muito jovens, adolescentes, crianças, a lidarem com esse mundo? Não seria melhor uma sociedade na qual os talentos pudessem se desenvolver e se projetar num ambiente mais saudável, valorizando-se o trabalho do artista sem precisar submetê-lo a tanta exposição?

E enquanto essas estrelas têm suas vidas consumidas de forma tão intensa, quantos outros milhares de artistas lutam para ter a possibilidade de viver de sua arte mas não encontram espaço?

Questionamentos semelhantes podem ser feitos  sobre expoentes de outras áreas, como o esporte e o cinema.